quinta-feira, 9 de abril de 2015

História do adestramento - capítulo 3 (último)

O adestramento e a cavalaria militar

A cavalaria militar de guerra é a base para o adestramento moderno. O treinamento elementar de adestramento nos ensina que o cavalo deve responder prontamente e obedientemente aos comandos do cavaleiro, para se conduzir bem nos dois sentidos, e para ser complacente (fácil de manejo e condução), ou seja, todas as peculiaridades desejadas para um cavalo, cujo cavaleiro precisa enfrentar espadas, flechas ou tiros. Uma montaria de cavalaria não traz benefício a qualquer cavaleiro se ela for desobediente, não responde às ajudas e é de difícil manejo. Desde os tempos antigos, a equitação básica é treinamento obrigatório nas escolas militares, assim como na famosa Escola Francesa de Cavalaria, em Saumur.

Nas escolas de cavalaria, nos treinamentos dos cavalos para a guerra, os espertos cavaleiros descobriram que eles poderiam fazer seus cavalos se tornarem ainda mais úteis ao ensiná-los movimentos especiais que os dariam vantagens estratégicas na batalha. Um espadachim, por exemplo, poderia literalmente ficar acima de seus adversários, montados ou desmontados, ao fazer o levade[1], um comando controlado dos posteriores. O cavaleiro poderia dispersar os soldados desmontados ao pedir que seu cavalo realizasse o courbette[2], um movimento em que o cavalo se empina a uma altura temível e dá um salto para frente sobre as patas traseiras.
Além disso, ele podia infligir sérios danos ao girar em uma linda pirouette e depois fazer o cavalo realizar um capriole, um salto vertical com um chute para trás com força total. Este e outros movimentos no ar acima do chão, assim como são conhecidos, ainda são realizados na famosa Escola Espanhola de Equitação de Viena.

A cavalaria precisava de montarias com excelente resistência e que podia passar por vários terrenos e obstáculos. Para ajudar a selecionar os melhores cavalos e a testá-los em sua forma física e atlética, além da obediência, era realizada uma avaliação em três fases, durante quatro dias, chamada de Military. Na primeira fase, avaliava-se o dressage (adestramento). A segunda fase era um teste de velocidade e resistência, que compreendia um percurso de steeplechase e salto em cross-country, ou seja, corrida com obstáculos naturais. Na terceira fase, havia o concurso de salto em obstáculos artificiais, desenhados para avaliar as habilidades de velocidade e condicionamento físico, vindos como viessem os cascos após a árdua prova de cross-country.

No final do século XIX e início do século XX, quando as espadas foram substituídas por armas
de fogo, as montarias foram pouco necessárias, e os cavalos passaram a ser treinados em nível mais básico. As competições de salto, adestramento e cross-country do atual triátlon equestre, chamado também de concurso completo, são diretamente derivadas da Military.

Quando a arte encontra o esporte

O Barão Pierre de Coubertin, da França, fundou o Comitê Olímpico Internacional (International Olympic Committee – IOC), em 1894, com o objetivo de revitalizar os Jogos Olímpicos como uma competição moderna de esporte internacional. O primeiro evento olímpico moderno aconteceu em Atenas, em 1896.

A primeira participação equestre foi nas Olimpíadas de Paris, em 1900, mas não com as modalidades que se apresentam nas competições equestres atuais. Acorreram quatro eventos equestres: o polo, que foi disputado entre quatro equipes (Grã Bretanha, França, México, Espanha e Estados Unidos); o salto, que foi semelhante ao de hoje, com 45 competidores inscritos, mas somente 37 competiram; o salto em altura (conhecido como prova de potência), que chegou à marca de 1,85 m, com um empate entre o francês Dominique Gardere, montando Canela, e o italiano Gian Giorgio Trissino com Oreste; e o salto em distância, que atingiu a marca de 6,10 m por Constant van Langendonck e Extra Dry, e Trissino com Oreste novamente foram destaque, ganhando a medalha de prata com a marca de 5,70 m. Destaca-se também a participação de uma mulher, Elvira Guerra, da equipe francesa de polo.

A participação equestre desapareceu das Olimpíadas de 1904 e 1908. O público precisou esperar até 1912, nas Olimpíadas de Estocolmo, para ver o retorno equestre nas Olimpíadas. Isso se deve muito aos esforços do Conde Clarence Von Rosen, mestre cavalariço do Rei da Suécia. Von Rosen acreditou que poderia incluir as competições equestres nas Olimpíadas, e que isso iria estimular o interesse do público em geral pelo esporte equestre, então, ele estabeleceu o Comitê Internacional Equestre e apresentou a ideia ao IOC em 1906,.que aprovou a medida para as Olimpíadas de Londres, em 1908. Porém, problemas de ajustes no recém-criado Comitê Equestre impediram sua participação no evento de 1908. Von Rosen também foi grande precursor da popularidade do adestramento na Europa.

Nas Olimpíadas de Estocolmo, em 1912, foram apresentadas três modalidades equestres: a Military com três dias de prova, uma competição individual de adestramento, além das competições de salto individual e por equipe. Todas essas modalidades ainda permanecem no programa olímpico até hoje.

A partir de 1912, e durante cinco décadas das competições olímpicas modernas, somente homens militares podiam competir. Referindo-se particularmente ao adestramento, os padrões pré-determinados das reprises eram preparados para adequar ao nível dos cavalos dos militares. A única maneira de mulheres serem capazes de participar seria como proprietárias de cavalos inscritos nas competições. Como proprietárias, elas recebiam os créditos como vitoriosas, porém, elas não podiam estar presentes nos eventos. 

Somente a partir de 1952, todos os homens, militares ou civis, foram permitidos a competir em todas as modalidades equestres dos jogos olímpicos, e as mulheres foram permitidas a competir somente no adestramento. As mulheres passaram a competir em competições de salto somente a partir de 1956, e no concurso completo somente a partir de 1964. Vale a pena destacar a amazona britânica Lonra Johnstone, que, em 1972, com 70 anos, foi a mais velha mulher a competir em provas equestres em Olimpíadas. Também é importante destacar que, atualmente, existem somente dois esportes olímpicos em que homens e mulheres competem diretamente um contra outro por igual: o hipismo e o iatismo.

As competições olímpicas definem o padrão para outras competições equestres internacionais, bem como para competições internas, nos vários países que participam das Olimpíadas. Por essa razão, as reprises de adestramento não incluem levade, courbette e capriole, que se tornaram obsoletos com o advento dos armamentos modernos. Porém, ainda estão incluídos o piaffe, que compreende um desafiante trote no mesmo lugar, e o passage, que é um trote elevado com um momento de hesitação entre as passadas. Esses dois movimentos são considerados de maior reunião e os mais sofisticados (ne plus ultra) das competições do adestramento moderno.


Bibliografia dos três capítulos da história do adestramento:

BRYANT, J. O. The USDF guide to dressage: the official guide of the United States Dressage Federation, 2006.
GUENARD, Laurence G. L’équitation pédagogique. Disponível em: < http://equipeda.info/basse-haute-ecole.html>.
MORROW, Jason. The dressage arena: the story of the letters. Disponível em: <http://borrowing-freedom.blogspot.com.br/2012/04/dressage-arena-story-of-letters.html>.
TOP ENDS SPORTS. Women at the Olympic Games. Disponível em: <http://www.topendsports.com/events/summer/women.htm>.

WIKIPAEDIA. Equestrian at the Summer Olympics. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Equestrian_at_the_Summer_Olympics>.





[1] No levade, o cavalo afunda seus posteriores e suas ancas em um ângulo de 45° e eleva suas mãos, permanecendo empinado nessa posição por vários segundos.
[2] No courbette, o cavalo se empina e dá vários saltos para frente somente sobre suas pastas posteriores.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

História do adestramento - capítulo 2

Sobre o tamanho das pistas e as letras de adestramento

Não se sabe bem ao certo quem definiu o tamanho oficial das pistas de adestramento e não há registro específico sobre a evolução da aplicação de suas letras, mas existem poucas referências sobre o assunto em fontes de literatura equestre alemã. Uma das referências diz que a cavalaria alemã do século XIX foi quem definiu o tamanho da pista devido ao tamanho entre dois conjuntos de quartéis, onde praticavam o adestramento ao ar livre, e colocavam as letras acima das portas desses dois quartéis.

Segundo a palestra no Fórum Internacional de Adestramento (2013), acredita-se que, no início, as pistas eram marcadas somente com as letras A, B, C, D e E. Na medida em que novas figuras foram apresentadas, foram incluídas as letras F, G, H, I, J, K, L e M (posteriormente, a letra J foi substituída pela letra X). Como as letras G, I, X, L e D são letras de posições da linha central da pista, elas não são marcadas, e, portanto, são imaginárias, o que dificulta, inicialmente, a compreensão sobre a sequência das letras em pista por parte dos cavaleiros iniciantes.

Quanto às letras V, P, R e S, acredita-se que quando os primeiros nobres franceses praticantes mostravam novas figuras em apresentações, novas letras eram incluídas em homenagem honrosa, por isso, essas letras não seguem a sequência de letras do alfabeto:

P – Prince (príncipe)
V – Victorieux (vitorioso)
S – Souverain (soberano)
R – Roi (rei)

Já a literatura alemã diz que as letras foram definidas pela cavalaria alemã no século XIX, e como as apresentações eram assistidas pela aristocracia, as letras eram colocadas na parede para que todos vissem, e que as iniciais correspondiam a ao que segue abaixo, porém, essa referência não inclui as letras A, C, D, G, I e L. Portanto, a origem das letras permanece uma incógnita...

K – Kaiser (rei)
F – Furst (príncipe)
P – Pferdknecht (cavalariço)
V – Vassal (vassalo)
E – Edeling (convidado de honra)
B – Bannerstrager (porta-estandarte)
S – Schzkanzier (chanceler do tesouro)
R – Ritter (cavaleiro)
M – Meier (mordomo)

H – Hofsmarshall (lord chanceler)

Não percam o próximo capítulo!

domingo, 5 de abril de 2015

História do adestramento - capítulo 1

Como diz o ditado: “se você quer saber para onde você vai, você precisa saber de onde você vem”. Por isso, para se estudar o adestramento de hoje, é preciso saber sua história e sua tradição. Faremos isso em vários capítulos, e eis aqui o primeiro:

Os tempos mais remotos da equitação

O trabalho mais antigo de literatura equestre é “A arte da equitação”, escrito pelo historiador grego Xenofonte, que morreu por volta de 350 a.C. As obras escritas por Xenofonte tratam basicamente de treinamento de cavalos para guerras e longas viagens. No entanto, elas foram bastante inovadoras à época por descreverem como transformar os cavalos em ágeis parceiros de batalha, destacando que elas defendem uma abordagem humana de paciência para treiná-los, além de valorizarem a beleza do cavalo. Vale citar Xenofonte: “Tudo o que é forçado e castigado, não pode nunca ser bonito”.

No primeiro ano depois de Cristo, nasceu Lucius Flavius Arrianus. Ele escreveu o manual de cavalaria romana, intitulado “Ars Tactica” (A arte da equitação, em latim). Este é o único livro desse tipo a sobreviver a esta era. O livro apresenta vários conceitos importantes de adestramento, cada um com um objetivo de sucesso em batalhas.

Depois do colapso do Império Romano, meios mais humanos de tratamentos foram desenvolvidos na ginástica de treinamento de cavalos atletas para vários propósitos, mas se referiam basicamente à equitação clássica.

Na Idade Média, os cavalos eram usados, principalmente, para transporte e para a guerra, e quase nada de literatura sobre equitação foi produzida na época.

Nos tempos da Renascença

Na Renascença, o interesse pelos estudos equinos ressurgiu, e em consequência disso, sugiram as diversas e notáveis escolas. Os nobres passaram a se divertir com passeios a cavalo e com o treinamento de cavalos em níveis atléticos raros, incluindo vários feitos espetaculares de ginástica. Isto se refere à equitação realizada, geralmente, em arenas fechadas e cobertas, chamadas de “escolas”. Essa prática, também conhecida como alta escola de equitação, foi considerada como um passatempo refinado, gentil, semelhante à arte ou à música. Os nobres passaram a pratica-la nas recém-criadas escolas de equitação clássica (também conhecidas como escolas de arte equestre), e passaram a se entreter com as apresentações de adestramento da alta escola. Haute école - le dressage classique du cheval, ou l´Art Equestre[1].

A Academia Real de Arte Equestre, fundada em 1420 pelo Rei Duarte, em Lisboa, Portugal, foi a primeira escola de adestramento clássico do mundo. Depois de sua destruição em tempos de guerra, ela foi restaurada e reinaugurada em 1979.

Em meados de 1500, a Escola de Nápoles, na Itália, foi fundada por Federico Grisone, autor do livro “Gli ordini di cavalcare” (As ordens para cavalgar). Apesar de Grisone ser vastamente mal visto atualmente por ter aprovado o uso de bridões severamente fortes e outros métodos considerados desumanos pelos padrões modernos, seu livro é reconhecido como o primeiro a estabelecer um sistema para treinar um cavalo até os mais altos níveis de adestramento.

O Duke de Hapsburg levou éguas tordilhas ibéricas (da raça espanhola para trabalhos de alta escola) para cruzar com seu garanhão em Lipizza (Áustria), e em 1580, e assim nasceu a famosa raça lipizzane. A Alta Escola Espanhola de Viena, nomeada assim devido à origem espanhola do cavalo lipizzane, foi fundada em 1572, e até hoje ainda é o lar dos garanhões lipizzanes. Os “garanhões tordilhos dançarinos”, dos filmes da Disney, são os mais famosos embaixadores do adestramento em sua pista de adestramento ornamentada com candelabros, onde os garanhões treinam e se apresentam regularmente, são as atrações preferidas pelos turistas que vão à Viena.

Ao final dos anos de 1600, Luís XIII da França e seu filho, Luís XIV, construíram os palácios de Versalhes, com o maior esplendor do mundo. Conhecido por nunca deixar as coisas pela metade, Luís XIV fez com que a Escola de Versalhes se tornasse o centro equestre mais fino de toda a França. Para entretenimento, ele criou o quadrilles, uma coreografia com quatro conjuntos de cavalo e cavaleiro, o dressage extravaganzas, conhecido hoje como carrossel (carousels), e encenou batalhas simuladas e outras atrações equestres de alto nível.

O mais importante, pelo menos para o adestramento moderno, é que Versalhes é o lar do mestre de cavalaria (écuyer), François Robishon de La Guérinière. Conhecido como o pai da equitação moderna, La Guérinière desenvolveu e refinou vários movimentos e conceitos notáveis do adestramento, e, em 1733, escreveu sua obra-prima, “École de cavalarie”, que muitos entusiastas do adestramento moderno consideram a obra mais importante da literatura equestre.

Ensinamentos equestres se espalharam por toda a Europa e acabaram chegando na Inglaterra, onde em 1743, William Cavendish, o Duque de Newcastle, escreveu “A general system of horsemanship”, que soma a maioria das teorias do período Barroco, quando o adestramento se desenvolveu como arte.

Hoje, existem várias escolas famosas de equitação, além da Escola Espanhola de Viena e a Academia Real de Arte Equestre. A École National d’Équitation, em Saumur, França, fundada no final dos anos de 1500 e lar do famoso Cadre Noir e da antiga Escola de Cavalaria Francesa, suplantaram Versalhes como sede da equitação clássica francesa. A Academia Real de Andaluzia de Arte Equestre, em Jerez, Espanha, foi construída com base na tradição da exibição da haute école, que data dos anos de 1600. O Centro Alemão de Treinamento Equestre Olímpico, em Warendorf, dirigido pela Federação Nacional Equestre Alemã, é uma meca para muitos competidores de ponta do adestramento atual. O Centro Educacional de Adestramento Sueco, em Strömsholm, também goza de reputação mundial como um centro de treinamento de ponta.

Um notável mestre do adestramento francês do século XIX, François Baucher, nascido em Versalles (1796-1873), definiu haute école como
[...] todo trabalho feito em duas, três ou quatro pistas, em passo, trote e galope, em linha ou em curvas, com contato ou em reunião, além de mudanças pé, em formação de oito figuras, piaffe etc. Os cavalos que executam todas essas figuras com precisão são chamados cavalos inteligentes, cavalos de estudo ou cavalos de alta escola. Na alta escola, o cavaleiro usa de todo o potencial físico, mental e moral do cavalo. Por meio dos exercícios difíceis que se somam, o cavaleiro aperfeiçoa a flexibilidade e o equilíbrio de seu cavalo; pela continuidade de suas ações, ele faz conhecer sua influência sobre seu cavalo e como ele o domina, dominação esta que não tem nada de revoltante para o cavalo, uma vez que, longe de o degradar, ele aumenta seu orgulho natural pelas poses mais nobres e graciosas.[2]

Não percam o próximo capítulo!





[1] Alta escola – o treinamento clássico do cavalo, a arte equestre.
[2] GUENARD, Laurence G. L’équitation pédagogique. Disponível em: < http://equipeda.info/basse-haute-ecole.html>.